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Coleção de Notas | Carla Zaccagnini

"Assim se escreve a história, menos com a memória

e mais por meio de esquecimentos."

Coleciono momentos e histórias em forma de coisinhas e caderninhos, centenas delas e deles. Souvenirs, postais, pedrinhas, papeizinhos, conchinhas, esses trenzim tudo - um tanto. Sempre assim no diminutivo mesmo, mania ou herança da mineirice familiar, vai saber. Cada um deles tem uma história e rememora para mim momentos que escolhi para lembrar. Será que isso é um tipo de fuga do momento presente? Li isso em algum lugar, vou achar o caderninho onde anotei. rs

Bem, mas o que eu quero falar agora é da obra, de uma artista chamada Carla Zaccagnini. Eu a vi no MASP, na exposição Histórias da Infância - apesar da crítica horrorosa que li desta exposição na Folha de São Paulo (mas quem sou pra contrariar o crítico, né mesm) Fui conferir mesmo assim e gostei. Ponto. Me tocou profundamente, a exposição toda. Acho que passei a tarde inteira no MASP aquele dia, tomando notas e admirando tudo. Mas a obra desta artista realmente botou uma pulga atrás da minha orelha, a ponto d'eu ter tido a pachorra de copiar todo o texto da obra - que ela intercalou com vários desenhos - que eu não achei em lugar nenhum na internet para colocar o link aqui. O nome da obra é El Gigante Egoísta, e transcrevo aqui o texto, que achei demais demais de muito bom mesmo. Me faz pensar até hoje, sempre releio estas notas e fico dias pensando, sem a ambição de chegar a conclusões, ou de entender o que é certo ou errado, se é que existe certo ou errado, enfim segue o texto. Aproveite.

"Há o mito de Orfeu, quando desce ao inframundo para buscar Euridice, e Hades lhe permite levá-la, com a condição de que caminhe sempre à frente e não se vire para vê-la até que volte a ser iluminada pelo sol. Orfeu percorre obediente o árduo caminho de regresso e não pode esperar mais; volta-se assim que chega à superfície, sem ter em conta os passos que os separam. O que vê é Euridice, que desaparece para sempre logo antes de sair à luz.

E há também a história bíblica da fuga de Sodoma, quando também, a Ló e sua família se lhes ordena não olhar para trás. A mulher não consegue partir sem ver a cidade de fora, pela última vez, e é transformada em estátua de sal: os passos estancadas, o torso girado, os olhos abertos como querendo engolir tudo, enquanto aguarda a próxima chuva.

A ameaça de olhar para trás, a irresistível tentação de fazê-lo e o castigo. Acho que os entendo. Embora ache que, ao olhar para trás, o risco não esteja em fazer desaparecer o que vemos, nem em cristalizar-se quem olha. O risco está em solidificarmos aquilo que alguma vez vimos, ou que então acreditamos ver, e em voltar a andar para frente carregados dessas imagens coaguladas; congeladas, não no momento em que se formaram, mas no momento em que as olhamos de novo e decidimos que era assim. Não nos lembramos de um aniversário, mas sim das fotos desse aniversário, ou do relato de nossa reação diante dos truques do mágico.

É possível que seja em função desse perigo mítico de olhar para trás que só se olhe o passado por meio de retrovisores. E assim se escreve a história. A partir de um dia, também histórico e também cheio de guerras, olha-se o reflexo do passado nos rastros que ficaram e decide-se que se entende o que se passou, como se passou, o que se passou ou o que se diz que se passou, ou o que se pensa pode ver, nos restos, que possa ter se passado, ou o que o presente resultante nos deixa deduzir que se possa ter passado. E assim se erguem as estátuas de sal que podem durar anos e séculos, se não houver tempestade.

Não sei que o tempo seja circular, mas o passado se repete, nós o repetimos, gostamos de contá-lo de novo. E a cena que evocamos daquele aniversário é sempre a mesma. De um dia inteiro de surpresas e felicitações, pinçamos sempre o mesmo momento; um que não sabemos como ou por quem foi escolhido, mas que aflora como cena de Marilyn Monroe segurando o vestido sobre o respiro do metrô, cada vez que se fala ou se pensa naquele aniversário (ou naquele enterro, ou naquele dia sem data).

Assim se escreve a história, menos com a memória e mais por meio de esquecimentos. Há muito o que deixar de lado, reiteradamente, para tecer esse encadeamento de sucessos épicos que constrói e reconta a história como um álbum de fotos de família. É preciso esquecer consistentemente. Tudo aquilo que não tenha prova manifesta poderia não ter acontecido, e se deixa de mencionar: já nào poderá mais ter acontecido. E vai restando um só relato. De todas as histórias possíveis, escolhe-se uma fábula. A do astrólogo que, de tanto caminhar olhando estrelas, cai no poço? Ou a de Pedro, que, de tanto repetir um lobo inventado, já ninguém lhe dá ouvidos quando o lobo é de verdade e esta faminto?

Talvez uma forma de poder escrever outra história seja se aproximar do passado por meio de novos reflexos, encontrar pistas intactas. Não intactas como incólumes, ao contrário, precisamos dos documentos que foram guardados sem cuidado e puderam ir se transformando as escondidas. Esses que continuaram vivos sem testemunhas e estão agora um pouco sujos e um pouco rasgados, mas como novos. Os discretos, que souberam ficar calados cada vez que podíamos tê-los feito reluzir como estatuas ou a afundar para sempre nas trevas. Aqueles que conseguiram passar despercebidos e puderam, assim, conservar a estranheza. Os que não aprendemos a olhar e só podemos ver com desobediência, com a urgência inconsequente de Orfeu e de Edite, ou a fome de um lobo que há muito se espera. "

Carla Zaccagnini, Buenos Aires, 1973

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